Abuso Sexual Contra Crianças

[…] Eu não quero mais falar das coisas ruins… Eu vou só olhar pra ti, tá? […] Fala de S.H. […]

[…] Eu não quero mais falar das coisas ruins… Eu vou só olhar pra ti, tá? […]

Fala de S.H. uma menina de 5 anos, quando eu pergunto a ela em sessão de psicoterapia, algo sutil, sobre as cenas de abuso sexual vividas por ela, praticadas por seu pai e avô paterno.

Suas respostas eram silêncios profundos com seus olhos negros que me fitavam profundamente e me convidavam a entrar, a visitar sua emocionalidade. E como uma convidada cuidadosa, fui sendo conduzida por minha pequena anfitriã a conhecer seu mundo interno.

No final do corredor do silêncio encontrei o medo e a culpa enrolados em uma mantinha branca chamada passividade. Trancado no quarto, chorava baixinho o amor. Sequelas do abuso sexual.  Sentimentos confusos, ambivalentes que, na presença do pai, sequestravam tantas coisas bonitas dela: ingenuidade, doçura, infância, liberdade, confiança, sorriso, espontaneidade, cabelos loirinhos, segurança, bolachinhas da feira.

S.H. contava em silêncios, enrolados na mantinha da passividade, agarradinha no medo e na culpa, que aceitava os “nãos” sem conseguir perguntar por que. Aguentava o frio, a fome, o tempo trancada no banheiro, chorava e depois dormia. Tinha que dar seus brinquedos para as outras crianças. Segurar o pênis do avô, dormir com ele nu a seu lado.

[…] Eles dizem que sou chata. Mas por que sou chata? […].

Fala de S.H. que mostra a culpa se escondendo com uma pontinha de dúvida.

Muitos outros abusos vêm junto do abuso sexual.

S.H., eu e seu silêncio. Algumas bolachinhas, algumas bonecas, eu contando histórias e ela me conduzindo por seus caminhos.
O silêncio é intimidade. Se estamos a vontade com o outro em profundos momentos de silêncio verdadeiramente estamos.

Estar com o outro em “escutas qualificadas”, que busca apenas estar e não fazer, a verdadeira relação de confiança acontece. E estabelece a “ação conjunta” e vem o que precisa vir a ser.
Estar e escutar uma criança tão pequena vítima de abuso pede nossa humildade e nossa humanidade. Exige que revisitemos nossos conceitos, nossos preconceitos, que cada um de nos atualizem crenças pessoais e sociais.

Como vemos uma criança?

Alguém que precisa ser cuidada por seus responsáveis, crescer em suas capacidades.

Porém ser responsável não significa ser dono. Autoritarismo não gera respeito. Bater não educa.
Gritar já é abusivo.

Qualquer tipo de abuso é crime. Com marcas invisíveis e sequelas irreparáveis.

Mas o abusador não vê assim. Sua ótica adoeceu. Em 70% dos casos tem na infância história de abuso, sem ter tido possibilidade de resignificá-la.

Como ele vê: […] Ela quer tanto quanto eu, porque ela não resiste e não conta pra ninguém, ela coopera. Às vezes é até ela que começa […] relato do avô de S.H.

A violência dentro da família é uma das mais cruéis, por que já existe o laço de confiança e afeto entre a criança e o abusador.

Afetividade que aos poucos vais se modificando sem descaracterizar o vínculo protetor, mascarando o abuso, gerando sentimentos confusos, ambivalentes. Aquele que deveria proteger sim, está abusando. Desta forma proteção e violência se fundem na ambivalência e na passividade e abusador e criança promovem um pacto de silêncio e segredo. Esta experiência passa a ser uma forma natural de relacionamento durante muitos anos, até que a criança, na maioria das vezes na adolescência ou vida adulta, atinge a maturidade e consegue o discernimento do que é amor e do que é abuso da parte de alguém que ela ama.

Com S.H. foi diferente. Aos 5 anos ela foi “escutada”. No fundo do seu corredor interno, o medo e a culpa enrolados em uma mantinha branca chamada passividade, foram buscar o amor que estava trancado no quarto e chorava baixinho.

Medo:- Venham que a culpa tem uma pontinha de dúvida numa coisa.

Culpa:- É. Porque na casa do meu pai eles dizem que sou chata? O amor encolhido, a passividade e o medo se olharam.

Amor: Limpando as lágrimas.

Disse:- Eu sei quem pode explicar e resolver essa dúvida. A mãe. Vamos perguntar pra ela.

– S.H.: Mãe, eu sou chata? Na casa do meu pai eles dizem que sou chata?

A mãe de S. H. que estava dirigindo, parou, olhou para a filha, e a “escutou qualificadamente”. De todo o coração garantiu que ela não era chata.

No olhar, no tom de voz, no toque de carinho S.H. sentiu a garantia do vínculo afetivo da proteção, do amor, rompendo com a dinâmica patológica do abuso sexual e organizando a escuta para a quebra do segredo.

S.H. Continuou a falar, a contar todos os detalhes do abuso para a mãe durante mais de 2 horas.

-“O meu avô me chama de chata quando eu não quero beijar o pintinho dele e…”

A mãe gravou todo o relato de S.H. em vídeo. O caso ainda tramita na justiça sem decisão final, por falta de provas, por ser tratar de criança tão pequena.

 

CENA FINAL

S.H. caminha em direção ao pai receosa.

Ele foi visitá-la em seu condomínio.

Ele é o pai e tem direitos assegurados pela justiça sobre ela, S.H.

Esta relação pai e filha precisa ser ressignificada, impõe a justiça.

 

O amor de filhos pelos pais é uma obrigação ou uma construção?

 

Telma Lenzi | 2011

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