Como conjugar Amor e Sexualidade? Quais são meus preconceitos sobre a nova narrativa social de sexualidade e amor?
“On nait pas femme, on le deviant”. Simone de Beauvoir (2000)
Esta afirmativa histórica da Simone de Beauvoir diz que nascemos com um sexo biológico, mas o sexo não causa o gênero. O gênero é uma “experiência vivida”, o gênero é o direcionamento do desejo.
Para o Construcionismo, todas as práticas eróticas e sexuais, assim como as definições de gênero, são criações humanas, constituindo objetos sociais da ordem da linguagem, da cultura, do simbólico.
A sexualidade como uma instituição social, não difere de todo o processo de institucionalização da realidade.
Não havendo uma sexualidade natural, mas social, o que ocorre com o sexual é o mesmo que ocorre com todas as demais esferas da vida social: uma construção convencional e histórica, arbitrária com a aparência de uma realidade natural, universal, necessária e irreversível, tornando-se estigmatizadas como anormais todas as demais formas que ficaram excluídas no processo de institucionalização.
A perspectiva da construção social do gênero é central para nossas reflexões acerca dessas questões, já que as várias formas de manifestação do Feminino se definem por sua relação com o Masculino, também em suas muitas possibilidades.
A partir da década de 80, os estudos de “gênero” permitiram uma releitura crítica das teorias e pesquisas sobre mulheres, desvinculando-se dos estereótipos e ultrapassando o reducionismo biológico.
A feminilidade e a masculinidade passaram a ser compreendidas como culturalmente construídas e situadas no espaço e no tempo: os discursos criam as diferenças entre homens e mulheres.
Kimmel (2000) mostra como a separação de esferas – pública para o homem e privada para a mulher – significou mais que separação espacial, pois dividiu o mundo social e o domínio psíquico em duas metades complementares.
Os homens expressavam traços e emoções associados ao trabalho, como competitividade, realização pessoal e racionalidade instrumental, enquanto as mulheres cultivaram as qualidades domésticas como o amor, cuidado e compaixão.
Kimmel coloca ainda, que estas diferenças resultam das mudanças sociais e econômicas, e não o contrário: a desigualdade de gênero produziu as diferenças que legitimaram as desigualdades sociais.
À medida que mulheres entram no domínio público, reivindicando igualdade de oportunidade e remuneração, e que homens começaram a aspirar a relações de intimidade, pode-se abrir um caminho para a democratização, emergindo várias possibilidades de “Masculino” e “Feminino”, em relações idealmente flexíveis e plurais.
As desigualdades de gênero começam a ser revistas: homens e mulheres desenvolvem a autonomia e o cuidado das relações, ambos ocupam o domínio público e privado, as mulheres deixam de ser divididas em puras e impuras por assumir uma sexualidade livre e completa.
O novo Masculino compartilha desse Feminino, que se atualiza e se apropria de vivências e espaços que lhes eram vetados. Questiona-se a feminilização do amor, e a masculinização do sexo, ativo, conquistador, dominador.
Homens e mulheres podem ter experiências amorosas e sexuais dentro de um campo amplo de escolhas possíveis.
AMOR
O desafio do amor: aceitar o outro com ele é (e não como eu gostaria que ele fosse). Amor é fundamental para ligar as pessoas.
Mas será que o amor suportará a tantas expectativas, como nas relações de casal atuais, principalmente se houver uma projeção de longa duração?
Costa (1998) nos mostra que o amor é um fenômeno histórico, em contínua construção, desde seus primórdios.
As diversas transformações por que passou mostram que novas regras podem ser inventadas, dependendo de nossas escolhas. O crescente individualismo e falta de suporte social de nossa cultura levam à busca de relações amorosas que nos proporcionem a continência, o reconhecimento e a validação. Elas podem nos ajudar a perceber quem somos, o que desejamos e para onde nos encaminhamos, num movimento de construção e reconstrução de significados que atravessa o ciclo vital.
Costa (1998) reflete que, o amor como uma crença emocional pode ser mantido, alterado, dispensado, trocado, melhorado, piorado ou abolido. Quando se está descontente com a maneira que se lida com esse sentimento, cada um pode recriá-lo. Nenhum de seus elementos afetivos, cognitivos ou conativos é fixo por natureza.
O amor-sexual, como fundamento do casamento, surgiu na modernidade e, com ela, trouxe um elemento revolucionário, pois anunciava uma nova ordem das coisas. Neste tempo, o amor vai percorrer uma longa trajetória até chegar à condição de estímulo máximo para o casamento, passando pelo impulso dramático Shakesperiano, no século XVI. Essa trajetória tem seu ponto de chegada no século XVIII, na Revolução Burguesa e nas idéias de liberdade individual.
Em torno do novo ideal de conjugalidade instaurado, criaram-se muitas expectativas e idealizações, entre elas: a ideia de casamento como lugar de felicidade onde o amor e a sexualidade são fundamentais.
Hoje, estes mesmos movimentos de mudança levam os casais a reverem suas idealizações sobre casamento, amor e a sexualidade. Novas formas de amar e se relacionar estão sendo construídas para responder às exigências de uma sociedade onde os valores e as regras econômicas e sociais estão sempre em mutação.
Porém este processo de desidealização das relações pode levar tanto ao término da relação quanto à sua transformação em amor. Amar é uma atitude de amor pelo outro, que envolve aceitação do outro como o outro é, como definiu Maturana (1998):
“A emoção fundamental que torna possível a história da hominização é o amor… Não estou falando com base no cristianismo… O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. Por isso, digo que o amor é a emoção que funda o social. Sem a aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social. Em outras palavras, digo que só são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e que tal aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, envolventes e amplas, em que haja aceitação mútua num espaço aberto às coordenações de ações, não podemos esperar que surja a linguagem. Se não há interações na aceitação mútua, produz-se a separação ou a destruição. Em outras palavras, se há na história dos seres vivos algo que não pode surgir na competição, isso é a linguagem”.
Amar e se apaixonar são duas necessidades humanas que nem sempre se integra no mesmo relacionamento.
A paixão é subversiva, no sentido de que tira o indivíduo de suas obrigações cotidianas, arrebatando-o. A sensação de ser um só com o outro, muitas vezes, concretizada numa intensa vivência sexual, remete simbolicamente à busca e alcance da completude. Entretanto, leva à confrontação com a necessidade de separar-se do outro, reconhecendo-o como outro.
A percepção do outro como um outro, possibilita a afirmação de si como alguém que não depende do ser amado para sobreviver, mas que estabelece com ele uma relação que acolhe as necessidades de ser separado e de estar acompanhado e acolhido no processo de desenvolvimento.
Giddens (1993) nos fala que esta noção de amor fez surgir o direito à escolha.
Dessa forma, a ideia de democracia infiltra-se na ideia de família, significando que tudo pode ser dito, todos têm direito a participar das decisões, e que escolhas diferentes podem ser feitas. O presente oferece esta pluralidades de escolhas. E esta ampliação gera instabilidade trazida pelas mudanças que caracterizam este momento histórico.
A construção de quem somos acontecerá a partir da estabilidade e mudança, progressões, bloqueios e retrocessos. Com uma dimensão individual, experienciada e definida pela própria pessoa e uma relacional, pois se expressa na interação a partir de um momento histórico e em determinada cultura.
SEXUALIDADE
A sexualidade é carregada de historicidade social e pessoal,vivida e narradas por nos mesmos.
A concepção moderna de sexualidade, segundo Foucault (1988), designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do comportamento, a instauração de regras e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas, e também as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos.
Sexualidade é, então, uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais.
Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, como tal, submetida aos dispositivos de controle das práticas e comportamentos sexuais. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes à medida que a sociedade muda.
Das grandes mudanças do nosso tempo, a chamada revolução sexual e a emancipação feminina tiveram um papel fundamental. As mudanças que vêm acontecendo na sexualidade ao longo da modernidade resultaram em transformações radicais na intimidade e na vida pessoal dos indivíduos.
INTIMIDADE
A Intimidade é a vivência de democratização total do domínio pessoal. Vivida por homens e mulheres, transformados e transformadores.
Giddens, em “A Transformação da Intimidade” (1993), coloca que as novas formas de relacionamento que resultaram das mudanças que vem acontecendo no amor, sexualidade, e na intimidade, têm como base a igualdade e os princípios democráticos.
Para compreender essa realidade atual, Giddens reflete sobre estes três aspectos: o amor, a sexualidade e o relacionamento. Giddens diferencia a pratica do amor atual (amor confluente) como mais real que o amor romântico, porque não alimenta identificações projetivas e fantasias de completude.
As relações são simétricas nas trocas afetivas e no envolvimento emocional. O erótico é o centro do relacionamento conjugal e transforma a realização do prazer sexual recíproco em um elemento-chave na manutenção ou dissolução do relacionamento.
Desenvolve-se como um ideal em uma sociedade onde quase todos têm a oportunidade de se tornarem sexualmente realizados. Ao contrário do amor romântico, o amor confluente não é necessariamente monogâmico nem heterossexual.
Giddens, no que se refere à sexualidade (sexualidade plástica) reforça o momento em que ela foi separada do ato reprodutivo.
Este processo tem origem na tendência à redução da família, iniciada no final do século XVIII, e fortalecida com a difusão da contracepção moderna e das novas tecnologias reprodutivas que autoriza a mulher ao prazer sexual.
Sobre a intimidade, o relacionamento puro como chamou Giddens, é centrado no compromisso, na confiança e na intimidade. Existe uma história compartilhada em que cada um deve proporcionar ao outro, por palavras e atos, algum tipo de garantia de que o relacionamento deve ser mantido por um período indefinido. É um relacionamento diferente do casamento como uma “condição natural”, cuja durabilidade era assumida como certa.
O compromisso é necessário para que um relacionamento tenha a probabilidade de durar, mas não evita a possibilidade de dissolução.
Nesse tipo de relacionamento, o que conta é a própria relação, e a sua continuidade depende do nível de satisfação que cada uma das partes pode extrair da mesma.
O amor romântico também criou a possibilidade de estabelecer um vínculo emocional durável.
O que difere dos relacionamentos atuais, comparado com o amor romântico, é que, embora o amor romântico suponha uma igualdade de envolvimento emocional entre duas pessoas, durante muito tempo as mulheres foram mais afetadas por esta idealização.
Os sonhos do amor romântico conduziram muitas mulheres a uma submissão doméstica.
O amor romântico teve um impacto duplo sobre a situação das mulheres: além de manter as mulheres no lar, reforçou o compromisso com o “machismo” ativo e radical da sociedade moderna.
Os ideais do amor romântico começaram a se fragmentar com a emancipação sexual e a autonomia feminina. O declínio do controle sexual dos homens sobre as mulheres colocou possibilidades reais de transformação da intimidade. Embora a intimidade possa ser opressiva, ela pode ser transformada em uma negociação transacional de vínculos pessoais, estabelecida por iguais.
“A intimidade implica uma total democratização do domínio interpessoal, de uma maneira plenamente compatível com a democracia na esfera pública” (Giddens, 1990).
No nosso contexto, principalmente nos segmentos mais intelectualizados, o casamento tradicional (poder masculino) vem dando lugar à outra forma de casamento, onde a mulher reivindica igualdade e há uma constante negociação no relacionamento. Nesse tipo de casamento, a intimidade tende a se reestruturar com base em novos valores, entre os quais amizade e companheirismo se colocam como fundamentais.
A transformação da intimidade passa pela análise de gênero. Os novos estudos nesse campo questionam a ideia de que os homens têm mais problemas com a intimidade do que as mulheres.
A intimidade envolverá negociação constante. Ela requer a capacidade de comunicação pessoal, com os outros e consigo mesmo, em um contexto simétrico, de igualdade interpessoal.
Nesse cenário, as mulheres tiveram um papel de revolucionárias emocionais e prepararam o caminho para expansão da intimidade. A mobilização psicológica assim como as mudanças materiais e sociais permitiu às mulheres reivindicar a igualdade.
Mas a possibilidade da construção de relações amorosas e sexuais mais democráticas e igualitárias dentro ou fora do casamento é uma conquista de homens e mulheres. O acontecer deste novo contexto requer o encontro de homens e mulheres igualmente transformados e transformadores.
Tal conquista tem permitido o surgimento de outras formas de relacionamento amoroso, tanto no contexto heterossexual quanto fora dele. Vivemos hoje no mundo da pluralidade.
O casamento formal, heterossexual e com fins de constituição da família, continua sendo uma referência, mas convive com outras formas de relacionamento conjugal como as uniões consensuais, os casamentos sem filhos ou sem co-habitação, e as uniões homossexuais.
CONTRIBUIÇÕES PARA A PRÁTICA CLÍNICA
Como se estabelece hoje o contexto da terapia? O que cabe a nós terapeutas da modernidade?
As terapias de hoje buscam estabelecer contextos reflexivos dialógicos para a prática da reconstrução das narrativas dos clientes.
A nós terapeutas, fica o convite a revisitar nossos pré-conceitos e flexibilizar posturas pessoais, profissionais e culturais. Sabendo que o processo de mudança está acontecendo no hoje – no aqui e agora. Que envolve liberdade, mas também instabilidade.
Não podemos desvalorizar a dor deste momento histórico a respeito da sexualidade e amor. Precisamos estar conscientes das profundas, contínuas e atuais mudanças sociais, que afeta a nossa individualidade, remete a todos nós, terapeutas e clientes a questionar nossas escolhas e nossos direcionamentos na prática clínica.
Mudanças recentes, como a desvinculação entre sexo e amor e a validação da sexualidade como busca do prazer, com intimidade e afeto, mas não compromisso, muitas vezes virá carregado de ambivalências e contradições.
Restos de moralismo, restos dos padrões anteriores ainda vigentes será encontrado nas dores dos desejos não satisfeitos, das projeções e idealizações que se esvaziaram na quebra do amor romântico.
Mesmo que todas essas mudanças sejam uma conquista para homens e especialmente para as mulheres, se faz necessário o tempo de adaptação aos novos valores e a liberação dos restos de crenças culturais desatualizadas.
Uma constante reflexão sobre esta relação antagônica interna se faz necessária e contínua, em espaços de conversação dialógica.
A prática da conversação dialógica possibilitará o olhar por um lado, para a dimensão pessoal e por outro lado, a dimensão social que revela a persistência de um padrão tradicional, a dupla moral, que as transformações sociais vêm modificando no processo do tempo.
Ampliar suas possibilidades de escolha, pode muitas vezes significar arcar com o peso das contradições pessoais e sociais. Quando Bruner propõe estudarmos a questão do amor, gênero e sexualidade pela perspectiva narrativa convida a vermos ao mesmo tempo, as narrativas como modelos do mundo e modelos do self, modelo social e individual.
As narrativas vão servir como formas de mediação entre os modelos do self (e sua realidade específica) e os modelos da cultura, que é histórico e, por isso, pode mudar de uma época para outra. Lembrando que o padrão social é construído por nós como um modelo universal da nossa cultura.
O trabalho com as narrativas vem propor que homens e mulheres percebam suas realidades como construções transformáveis.
Propor que ao definir Sexualidade e Amor como construções sociais, assumam a autoria da transformação de suas histórias pessoais.
O momento histórico requer escolhas coerentes a partir de sua própria referência sem perder de vista suas próprias contradições e preconceitos. E que a dupla moral e a persistência a mudanças dos valores está tanto no mundo externo como no mundo social interno. É necessário, então, considerar os conflitos resultantes dessas novas possibilidades, já que há mudanças na vivência pessoal e também no âmbito social.
Para nos terapeutas, o estudo da narrativa nos permite conceber uma realidade em constante transformação e reconstrução. Podemos dar ordem e coerência às experiências da condição humana fundamentalmente instável e alterar esta ordem e coerência à medida que a nossa experiência ou os seus significados transformam-se.
E como companheiros de viagem, igualmente pertencente ao contexto cultural, terapeutas e clientes, podem juntos explorar novas versões para velhas histórias narrativas das questões de conjugalidade, sexualidade e amor em que incluam negociações potencializadas de esperança e bem estar para homens e mulheres do nosso tempo.
Finalizando: o amor e a sexualidade são narrativas sociais, tendo sido reinventado inúmeras vezes no decorrer da história e, assim como pode perpetuar as desigualdades de gênero, pode também ser transformador.
Somos os responsáveis pela transformação de nossas histórias e das narrativas sobre elas, construindo a nós mesmos como parte de nosso mundo (interno e externo). Toda forma de sexualidade e amor é sagrada!
Telma Lenzi | 14/5/2010
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Nós é que agradecemos!