Carta de uma mãe para um filho desaparecido.
Meu filho,
Tenho muitas coisas para falar, e como toda mãe, falo demais.
Queria te contar uma história, a história de um herói e suas caixinhas de cristal.
Queria muito um filho. Tinha medo de não engravidar (já tinha 34 anos).
Então, quando engravidei de ti tinha medo de te perder. Fiz repouso, fiz tudo certo.
Fiquei quieta construindo a sua primeira CAIXINHA DE CRISTAL – meu útero.
Tudo correu bem e no último mês tu já davas sinais claros que queria sair de lá. Crescendo sem parar, esticando as pernas e deixando a minha barriga com pontas bem visíveis.
Tive medo dessa sensação. Também tive medo da força do teu choro de quando nascestes. Pensei – será que vou dar conta de ser mãe dele?
E assim fostes crescendo. Eu te cuidava como uma leoa. Te amamentei até 1 ano. Te dei o meu melhor, sem dúvida.
Nos primeiros anos tu aceitaste tranquilo a tua segunda CAIXINHA DE CRISTAL – minha superproteção.
Tinhas pressa de conhecer o mundo. Eu te colocava dentro da caixinha e tu escapavas. Tu fugias. Tu experimentavas tudo. Tu pulavas sem parar, corrias, saltava pelos parques. Queria liberdade, ficar solto.
Eu não podia desligar um minuto de ti.
Na natação desde bebezinho. O menor a andar de cavalo, o mais corajoso. Todas as novidades tu querias experimentar.
Como te proteger? Como te segurar pra que não te machucasse?
Quantos machucados: joelho (muitas vezes), pontos na testa, no queixo, cirurgias de emergência. Tombo de skate. Dedos torcidos, machucados, dedos quebrado, cortados.
Quedas de bicicleta. Ufa! Fazia o que podia…
Comprava brinquedos (bonecos, carrinhos, legos, fantasias de heróis), para ficares dentro de casa sem tédio. Mas o que gostavas era de viajar, passear em espaço livre pra correr a vontade.
Lembra das Dunas? Das praias e dos hotéis fazenda? E das trilhas de cachoeiras? Como gostavas!
Como te conter? Eu ficava o tempo todo monitorando a hora de te pôr de volta na tua CAIXINHA DE CRISTAL – minha proteção. A tal caixinha de proteção nesta idade entre 4 e 10 tinha mesmo que estar sem tampa e livre para entrar e sair. Tu ficavas sempre pulando fora. E eu de olho.
Dei o meu melhor, mas te passei o meu medo. Tu não tinhas medo de nada, e isso era muito perigoso. Exagerei? Pode ser, mas só sei que não queria te perder, desde sempre, e tu sobreviveste a uma infância de furacão.
Onde foi parar essa essência? Muito medo aprisiona… Pouco medo não sobrevive! Qual a medida certa?
Não sei.
Não atingi este ponto de equilíbrio. Como poderia te ensinar? Como poderei te ajudar?
Então entrastes na adolescência. Tantas mudanças. Mudança de cidade, mudança de mundo. O mundo urbano. Os assaltos. A vida foi lentamente se complicando.
O mundo dos Games. A internet. Como enfrentar os desafios da vida real, do mundo? Tu não sabias. Ninguém sabe aos 16 anos.
Eu tinha medo de tu te machucar. Queria te proteger de todo o mal do mundo. Dos amigos interesseiros e traiçoeiros. Das meninas maldosas. Das baladas, bebidas e drogas.
Tinha medo de saíres da CAIXINHA DE CRISTAL definitivamente como homem. Então, para te proteger, te causei outro mal: O mal do medo.
A primeira namorada. O primeiro término. A primeira decepção. Como ela se atreveu?
Vi tu sofrer uma dor de amor tão grande que não consegui suportar e, te puxei. Sim te puxei pra perto de mim. Para te proteger.
Não percebia que teu sofrimento era um mal necessário. Um mal que poderia te fazer crescer. Que fazia parte do teu treinamento de adulto, da vida.
Eu não entendia nada. Eu não queria saber.
Tu eras meu. Meu único filho. E sofrias.
Ah! Eu te cuidei como um menino e te curei daquela dor de amor. Pelo menos era o que pensava.
Era seguro pra mim te ver por perto, sempre em casa, no PC, no quarto, viciado no jogo. Como custei para perceber o que estava acontecendo. Tu não saia mais de dentro da tua terceira CAIXINHA DE CRISTAL – teu quarto.
E minha proteção passou a ser tua agonia. Passou a te afetar, a te deixar sufocado. A te enlouquecer.
Como foi que eu não vi? Eu não podia ver.
Ah! Amar demais, amar com medo. A emoção intensa, cega, confunde, atrapalha o discernimento.
Mas tu precisavas dela. Tu não conhecias outra forma de amor. Tu não sabias o limite. Então, exausto, tu me pedias ajuda.
Teu maior amigo passou a ser eu.
Entre o céu e o inferno, passamos os tempos da tua adolescência.
E assim começamos a nos estranhar. A brigar e nos enfrentar. Às vezes como adversários… Às vezes com competição… Às vezes com violência.
Teu maior inimigo passou a ser eu.
Mas não era entre eu e tu a batalha! Não era entre mãe e filho.
Era entre a minha expectativa e a realidade de ser mãe. Era entre a tua dúvida: ser menino ou homem? Fuga ou enfrentamento? Fracasso ou vitória?
E tudo mudou de repente. Como deu essa volta?
Agora, o teu maior inimigo não sou mais eu. Teu maior inimigo é enfrentar a ti mesmo. O medo do mundo real.
E tua inquietude desde a barriga? A tua energia de aventureiro desde menininho? A tua vibração por experiências vivas, reais?
Tu entraste para outro mundo. O mundo virtual. Tuas experiências passaram a ser através da imaginação e não da ação. Tua alma adoeceu. Hoje redes virtuais fazem parte da tua geração.
Mas qual é o ponto do equilíbrio? Jogo na internet ou jogos de futebol? Conversas online ou beijo na boca? Amigos virtuais ou amigos reais? Vício no jogo ou vício no sexo?
Tudo é bom! Equilibrar é bom! Como poderia te ensinar? Como poderia te ajudar se eu também não sabia sobre este equilíbrio?
E assim nos perdemos um do outro. Éramos só eu e tu. E tu sumiste do mundo…
Te tirar da minha proteção, te mandar embora. Te empurrar pro mundo. Quantas vezes senti vontade, mas confundi amor com proteção.
Então era esse o caminho? E de que forma fazer? Como pedir isso para uma mãe? Como convencê-la que amar demais faz mal? Que proteção demais é sentida como castigo? Tinha medo de tu não dar conta e se perder?
Quem pode me condenar?
Não importam os outros.
Eu me condeno.
Como isso aconteceu?
Fui boa mãe de ti menino.
Mas do adolescente não acertei o ponto entre proteção e liberdade.
Parte minha se manteve na minha caixinha de cristal do medo da vida real.
Ficava confusa com medo e raiva.
E te deixei confuso e com medo e raiva de mim.
Tua energia foi gasta neste conflito.
E entre eu e tu, tu te foste de mim.
Agora, estou te entregando a ti mesmo para continuares.
Agora tua vida, tuas experiências estão contigo.
Nada mais está comigo. Nem tu estás.
Não posso mais controlar para que não sofras.
Pelo contrário, sou a causadora da tua dor.
Por outro lado paradoxalmente continuo a ser aquela que te faz crescer.
Minha voz irá contigo!
“Ser mãe é padecer no paraíso”
Telma Lenzi | Maio de 2009
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