Celi está fazendo 90 anos

Celi está fazendo 90 anos

Quase um século vivido e experimentado de perto, com todas as revoluções culturais, sociais destes tempos.

Nasceu com uma inquietude de sempre quero mais.

Alfabetizou-se antes que todos esperassem. Tinha sede por conhecer todo o conhecimento disponível.

Sua sensibilidade e gosto musical pelo piano, sua paixão pelos estudos, literatura, sua condição familiar, social e cultural influenciaram para que cedo deixasse sua cidade natal, Itajaí, em busca de continuar os estudos.

Ela queria um mundo maior p’ra ela e assim foi.

Não cedeu aos limites da condição de mulher da época.

Era boa, se não a melhor em tudo.

Desde campeã de tênis de campo à tudo 10 por extenso no boletim.

Ao voltar do internato na capital, foi uma das primeiras mulheres da cidade a exercer um trabalho. Sempre monitorada de perto por seu pai muito amado, um europeu (alemão) com sensibilidades especiais.

Queria o conhecimento, queria a liberdade e a autonomia financeira.

E assim viveu até se apaixonar e ceder aos costumes de uma sociedade machista da década de 50. Para noivar, foi colocada a condição que deixasse o trabalho no Banco Nacional do Comércio.

Ela também queria o amor, o casamento e família. Ela queria tudo.

Casou com o grande amor da sua vida.

Um bom partido, como dizia-se na época. Seus olhos verdes enigmáticos, sua grande responsabilidade perante sua família, a encantou.

Com ele teve cinco filhos para criar, uma casa grande para administrar. Equilibrando-se para junto dar conta da cardiopatia grave que atingiu seu marido durante quase 20 anos, levando-o quando ela tinha 56 anos.

Mesmo com essa vida de sobrecarga, sustos, risco de morte do marido e correria, não esqueceu de si, de suas vontades, de seus talentos.

Dizia: “descansar é mudar de atividade.”

Dedicada e talentosa com as artes manuais, corte costura e tricô, vestia as 4 filhas com suas produções.

Aos poucos passou a aceitar encomendas de tricô na máquina e a ter sua própria liberdade financeira. A casa tinha um  movimento extra de suas clientes e o barulho do rec rec inconfundível da máquina de tricô pra lá e pra cá.

Tocava seu piano estimado após o almoço. Ainda sinto a nostalgia ao som de “Branca”.

Voltou a estudar fazendo o supletivo para completar o segundo grau. Tirou o primeiro lugar no estado. Sua característica de quando fazia algo se dedicava por inteiro. A melhor.

Passou no vestibular, mas não seguiu. Por crenças sociais, pelo marido, falta de apoio? Não sei.

Apoiava os filhos e mantinha sempre a casa cheia de amigos deles. Mesa de ping pongue e bolinho de banana mantinham a turma animada.

Nos primeiros verões, veraneava em casas de temporada até adquirirem o apartamento de Balneário, que era um sonho seu.

As necessidades da doença do marido a fizeram entrar na auto escola e aprender a dirigir com quase 50 anos. Fato que trouxe autonomia e liberdade que a ajudou a construir a segunda etapa da sua vida: 56 anos e viúva.

Viúva, com quase todos os filhos criados, casados ou encaminhados.

Tinha somente um caminho: Viver. Mas viver bem. Viver o que não tinha vivido ainda.

Com conhecimento, liberdade e autonomia financeira, foi experimentar a vida.

Morou em Itajaí, depois em Blumenau por bons anos, onde fez muitas amigas e por fim escolheu fixar residência em Balneário Camboriú. Isto a deixou mais longe dos filhos, mas com total liberdade.

Com seu carro, seu grande companheiro, foi aonde quis.

Abriu mão do fogão, dos almoços diários. Comia em recentes restaurante a quilo, usufruía do advento dos pratos congelados.

Uma das pioneiras no Facebook, internet, jogos, por ali se atualizava com a família.

Montou uma confecção de enxoval para bebês e artesanatos patchwork para mesa e cozinha com motivos variados e temáticos.

A maquina de tricô ficou de lado, dando espaço para a máquina de costura. Trabalhou muito, vendeu muito, teve muito sucesso, reconhecimento e retorno financeiro.

Em sua segunda vida em Balneário, pertencia a vários grupos.

De Presidente da rede feminina, ao grupo da Apae, Ofiarte, voluntariados de ajuda aos mais necessitados. Também gostava muito do seu grupo da canastra e o da seresta.

Com tudo isso nunca faltou socorro aos filhos. Nas muitas dificuldades, nos nascimentos e nas doenças, era a primeira a chegar para cuidar.

Assim como nos nossos êxitos pessoais e profissionais, sempre presente prestigiando.

Mas sua vida era lá em BC.

Sua festa de 70 anos, foi para as 70 amigas íntimas. Uma grande rede de amigas. Assim como foi linda sua festa de 80 anos.

Mas a vida cumpre seu trajeto para todos.

E nestes anos de Balneário, foi se despedindo de todos os seus irmãos e de muitas amigas queridas. Sua grande rede foi diminuindo naturalmente.

Com sua simpatia, inteligência e mente atualizada foi renovando com amigas mais jovens, com os amigos dos filhos, com a vizinhança do prédio que sempre a trataram com afeto e a socorreram em adversidades.

Seu aniversário de 88 foi diferente, não teve festa.

Estava internada com fratura de fêmur por causa de uma queda doméstica.

Surpreendentemente passou pela cirurgia e complicada recuperação.

Não perdeu a vida, mas perdeu a liberdade e a autonomia, pilares da sua estrutura emocional. Perdeu a possibilidade de morar sozinha na sua casa, como bem gostava.

Estes dias falou que não viu o envelhecimento chegar. Quando a vida está boa o tempo passa muito rápido mesmo.

Que difícil estes tempo agora, mãe. Para ti, para mim, para todos.

Difícil te ver sem tua força, tua base de liberdade e autonomia.

Restou tua ousadia que hoje virou teimosia.

Restaram tuas queixas, tua insatisfação, tuas faltas, teu constante pesar, que são tuas saudades de todo o bom que vivestes na tua segunda etapa da vida.

Não podemos te dar o que precisas, porque a vida passou.

E olha só pra tua trajetória.

Quanta experiência vivida em uma só vida.

Quanto a agradecer pela oportunidade de viver e envelhecer, que tantos não puderam.

Quantas histórias pra contar e deixar de legado.

Abre mão do que não volta mais e vive o momento presente do teu Matriarcado e nos ensina a lidar com a finitude com gratidão e leveza na alma.

Por favor.

Não abre mão de ser minha, nossa mãe.

Faço uma pausa e imagino tu lendo esta crônica sobre ti, corrigindo meus erros de português. Sim tu és melhor nisso e me dizendo ao final: “Hum! Pra lá vamos!”

Sim mãe. Todos vamos.

E nem sabemos quem é o próximo.

Quem tem mãe tem tudo!

Te amo!

Telma Lenzi | 27/06/2019

 

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