Saudades

Devia ter te beijado mais, apertado mais as tuas bochechas de menino, te olhado mais. Devia ter prolongado mais o abraço, arrastado mais a conversa. Prolongado mais os goles do café.

Permitido mais o toque no tapete de veludo do teu peito. Pronunciado mais eu te amo, mais elogio, reclamado mais para ganhar mais colo. Queria ter dormido menos, brigado menos, desviado menos do caminho, desviado menos o foco das conversas.

Ter menos medo e raiva. Sorrido mais, chorado mais.

Porque não segurei o tempo, não afastei o vento que levou as horas naquela tarde na praia, para evitar o por do sol chegar? Porque não afastei o vento nas noites frias, porque permiti ele nos levar embora? Pra que correr pra chegar na hora se, o que se ganha no que se perde são almas novas, amigos novos, cenas, vida.

Como segurar a cena? Como voltar nela e vivê-la mais um pouco?

Quero nossas conversas as cinco da manhã na cama. Quero nossas conversas quase diárias e noturnas ao telefone. Todos já sabiam: são elas.

Quero nossas conversas no quarto de costura. Eu sentada na mesa de passar roupas, só espiando a vida que aconteceria pela janela, ao som da maquina de tricô.

Quero mais do banho de mangueira na areia, dois meninos pelados, uma foto, uma encrenca. A foto sumiu. Escutar o estrondo, escandaloso e feminino, das tuas gargalhadas azuis e exuberância loira, até eu aprender o sorriso da foto.

Quero os teus olhos azuis de volta. Quero tu de volta pra mim. O azul da esperança em um mundo de azulejos brancos. O jogo perdido na vitoria de 1 x 0. Não foi justo tu morreres antes de eu chegar.

Sumiram tantas coisas: o corcel amarelo de teto preto, o opala vinho, que depois virou prata, o buggy azul, a blazer preta.

Tudo tão depressa, nem fui avisada.

Ou será que fui e não acreditei?

Como segurar a vida? Qual o problema se eu estender os momentos? Qual o mal em querer mais, sempre mais?

Segurar o tempo, segurar o ciclo, segurar o processo, segurar os hormônios e os orgasmos. Ficar na cama branca, templo pro nada e tudo. Querer mais luas cheias no mês. Querer mais horas no dia. Querer mais dias de fins de semana. Mais dias de vida.

Correr? Só por prazer na Beira Mar. Ou se for correr atrás das minhas idéias, dos personagens da minha mente.

Quero inverter fatores: sabedoria aos trinta pra não jogar vida fora. Sabedoria aos quarenta pra não jogar o presente fora. Sabedoria aos cinquenta ainda tenho mais uns anos pra alcançá-la.

 O que ela quer chegando aqui de mansinho? Eu não a chamei. Não a quero já.

Vem para me desiludir. Para que aceite enxergar meu esforço inútil. Droga. Mais do que inútil, um esforço burro. Uma dor injusta que me causo no tempo presente perdido, de ficar no passado.

Ah! Mas não quero me resgatar de todo.

Deixa-me um pouco ser meio louca.

Quero manter a Cigana e a menina em mim. Só uma loucura mansa ainda peço então.

Vou me jogar no futuro. Quero segurar o tempo do teu olhar quando chegares.

Vindo em minha direção me buscas. Sorrindo pousas no meu olhar.

Ah! Esse momento é só meu.

Vou eternizá-lo.

Telma Lenzi | 2007

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Para Lia

Hoje acordei cedo pensando em ti com carinho.

Ia te escrever, mas antes fui meditar.

Na meditação da manhã, veio na tela mental o que eu quero para mim, meu propósito na vida. 

Uma sensação de plenitude, de estar tudo certo, tudo no lugar.

Fiquei rindo de mim e para mim. Em meio a tanto caos, dificuldades, a obra para construção da ONG, tantos obstáculos – minha alma está tranquila e plena.

Olhei-me de fora e pensei: tenho orgulho de mim. Da minha força, coragem, aprendizagem, da minha guerreira. 

E da minha vítima? 

Porque não tenho um bom contato com essa Personagem Vítima?

Vítima e vitoriosa. Um paradoxo!

Porque esta é a parte mais difícil para mim?

Sinto dor pelos “nãos” que a vida me dá. Pelos obstáculos, pela incompreensão. Pelas perdas, pela falta do aplauso, pela exposição do erro apontado, pela fala do que ainda falta.

Mas existe outra dor maior e da qual eu não posso culpabilizar o outro, romper, ou me afastar. É uma dor que continua no meu mundo interno.

Uma dor de um Personagem  Algoz, para com minha Personagem Vítima.

No meu mundo interno tem uma voz que me diz ‘NÃO’. 

Que não aplaude, nem apóia minhas empolgações. Que está sempre pronto para apontar o erro e o que falta.

Que teima em olhar pro passado com culpa, que coloca obstáculos, me trai e me rouba a paz quando me desqualifica.

Olhando mais de perto, sinto nele uma intenção de guarda-costas, uma proteção exacerbada que impede outras vozes: A teimosamente otimista, a ativista e a romântica. 

O Algoz me dizia: 

Preciso te proteger das ilusões do mundo para evitar a dor que a desilusão te causa. Então, eu te coloco a buscar a perfeição.

E com este paradoxo me torno a vítima de mim mesma – buscando a proteção do que não pode ser protegido (desilusão), cria uma nova ilusão (perfeição).

Neste jogo interno segue a minha vida.

Horas vence a Vitoriosa, guerreira de mim mesmo – expressa em atos e construções amorosas. Grande aprendiz e cuidadora.

Outras horas a Vítima – desqualificada pelo Algoz, assolada pela culpa da imperfeição. Submetida a uma penitência de reclusão para reparar os erros.

Como posso querer eu, ficar a vontade com as críticas desqualificadoras externas, se uma parte de mim já sucumbiu a elas?

Como posso criar uma saída para este paradoxo?

A Mestra interior, respondeu:

Não existe o não sofrer, este viver da forma que gostarias.

Não se iluda. Des-iluda-se!

Aceite a vítima, o sofrimento de desiludir-se.

Aceite a dor dos processos humanos e relacionais, aprendendo a conviver com eles.

Converse, transforme seu Personagem Algoz em um Medo protetor e mantenha-se acompanhada dele. Atualize sua tarefa de avaliar os riscos mas não impedi-la de ver e viver as possibilidades.

Resgate-se da reclusão penitencial do erro e seja acolhedora consigo. Os erros virão e os acertos também.

A culpa é só uma crença de que é errado errar. Liberte-se dela. 

Aceite sua condição de imperfeição humana!

Saí do estado meditativo com uma forte emoção.

Uma sensação de profunda esperança, de um caminho a seguir.

Sim, minha amiga. Precisava te contar tudo isso. 

Porque acordei pensando em ti e te pergunto: 

De alguma forma essa reflexão faz sentido para ti? 

Essas vozes opressoras também te habitam?

Queres me contar sobre isso?

Os diálogos do mundo continuam sempre, no privado, em nossos diálogos internos.

Assim, cada um segue com seu itinerário e reflexões transformadoras. E no ato de compartilhar, estarmos em conversas, novas possibilidades vão surgindo no caminhar. 

É no andar da carruagem, nos diálogos, que as melancias, nossas emoções, se ajeitam!

 

Telma Lenzi | Março 2007.

 

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Ritual de Reveillon 2006

Minha virada de ano aconteceu de uma maneira inesperada.

Não foi na data de sempre 31/12.

Veio aos poucos na música de um riacho, no cheiro forte do mato, que se misturava com o cheiro do barro molhado impregnado no carro. E ela estava ali, bem perto e de fácil acesso. Apesar de termos ido tão longe. Imponente e poderosa.

Dava medo e desejo aquela aproximação. Mas de perto e aos poucos fomos conhecendo seus espaços acolhedores que nos permitiu banhar a alma.

Emoções antigas, lembranças, restos, saiam de nós na cor marrom, cachoeira abaixo.

E assim ficamos até a água se tornar límpida de novo, trazendo o novo, a paz e a quietude. A vivência tantas vezes falada e imaginada, agora real.

Ruben Alves fala dos seus sacramentos: “Acho a vida maravilhosa, gosto de brincar, de amar, de música, de poesia, de escrever, de banho de cachoeira, de banho de chuveiro, de café com leite pão e manteiga, de balançar… Esses são meus alegres sacramentos.”

Drummond fala em sua poesia “Desejo”, que um deles é tomar banho de cachoeira. Também é um dos meus desejos/sacramentos preferidos. Mais especial ainda quando se oferece como um ritual de limpeza e passagem, como na metáfora destas águas. Água de cachoeira que corre entre as pedras, percorre e abre espaços, nem sempre fáceis. Água que faz seu caminho e segue em frente se dispondo para a natureza.

Quais são seus rituais?

 

Telma Lenzi | dezembro 2006

Confiança no Casamento

Recebi essa pergunta pelo site.

 Você acha possível um casal que perdeu totalmente a confiança de ambos os lados poder recomeçar o relacionamento e ser feliz?

Fiquei pensando sobre o que significa para cada um, para cada casal da palavra CONFIANÇA. 

Quais os significados que me vem sobre ela para iniciar uma reflexão?

Para mim…

Confiança tem a ver com entregar-se e com receber o outro. 

Confiança tem a ver com permitir ser cuidado e cuidar do outro.

Confiança tem a ver com o ato de amor: Aceitar o outro como o outro é. 

Confiança tem a ver com amar a si: incondicionalmente você não se abandonará. 

Confiança e autoconhecimento andam juntos: você conhece os motivos que te mantém junto ao seu parceiro (a)?

Confiança e responsabilidade andam juntas: você é totalmente responsável por seus momentos de felicidade e sofrimento. 

Você pode confiar em você, em suas atitudes e em sua própria coerência e incoerência? Será que já entendeu a natureza complexa da vida e de nossa humanidade?

Somos todos tão diferentes. Somos todos múltiplos em nossas vidas interiores.

Aceitar a realidade como ela é não causaria tanta desilusão. 

E aí mora um grande dilema. 

Não podemos atribuir ao outro a causa ou a responsabilidade das nossas (in) satisfações. 

E quando temos dificuldades de olhar para essa questão, criamos jogos, mantemos crenças limitadoras, geradoras de culpa.

Criamos uma outra versão para os fatos, até que finalmente conseguimos nos tornar vítima (igualmente nos tornamos o próprio vilão) da nossa história e das nossas relações. 

Quem traiu a quem com isto? 

Quem não foi digno de confiança?

Não importa o autor, o jogo é a dois. 

Todos jogam.  Este não é o problema. 

A questão é qual o jogo que se joga: 

AMOR ou ÓDIO.

CONSTRUÇÃO ou DESTRUIÇÃO

COLABORAÇÃO ou COMPETIÇÃO. 

Qual o final desta história?

Um casal pode voltar a ser feliz? 

Sim. Pelo exercício de amar.

“Amor é a emoção que constitui as ações de aceitar o outro como legítimo  outro na convivência.

Portanto amar é abrir espaço de interações recorrentes com o outro, na qual sua presença é legítima, sem exigências” (Maturana)

Um casal pode reconstruir-se sempre. 

O que precisa ser evitado é o recomeçar do jogo paralisante da culpabilização. 

E se for necessário o afastamento, a separação, se faça com respeito a si e ao outro, e não pelo jogo da vitimização.

Seja confiável para você mesmo!

Telma Lenzi | 2003

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