A dor não morreu – Uma conversa com o suicídio

A dor não morreu – Uma conversa com o suicídio

Você não imaginava que ia causar tanta dor, que ia acabar com a vida de tanta gente querida nesta sua escolha de ir embora.

Como isso tudo aconteceu? Quem você convidou para participar dos caminhos desta decisão? Foi uma escolha construída com um pedido respeitoso, trazendo dignidade a você e a sua rede? Parece que não, pelo que estamos vendo.

Sim, eu acredito. Você não foi escutado. Difícil alguém ser escutado com qualidade e presença na correria do cotidiano. Não é um hábito do nosso tempo. Estamos por demais conectados em redes e desconectados uns dos outros.

Mas preciso perguntar: você tentou o suficiente, gritou, lutou pelo seu direito de viver sua singularidade, num mundo de padrões tão determinados? Que ilusões e desilusões você criou na sua vida que mobilizou esta escolha? Você entendeu o funcionamento, a complexidade das interações do nosso mundo?

Você poderia construir ou desconstruir o seu mundo, a sua vida, seu cotidiano. Assim como você era igualmente construído por ele. Mas infelizmente você deixou o contexto te destruiu.

Preciso entender: não foi possível mudar as circunstâncias? Mudar de profissão, trabalho, parceira, de método de aprender coisas novas? Sair da tirania dos corpos perfeitos, brindes, sorrisos, viagens e mensagens de paz das redes sociais? Não foi possível mudar de vida, de país, de pele, de sexo? Fugir pro mato ou se refugiar no barulho urbano? Se permitir estar no meio do nada, e no meio do nada poder “ser”? Não foi possível criar, recriar seu próprio mundo interno e externo?

Sim, desculpa. Parece opressivo eu ficar aqui te inquirindo. Mas são tantas perguntas que ficam no vazio de quem ficou.

Também preciso de um momento para lidar com minha solidão, meu luto, minha dor.Não, não estou lhe culpando.  Espera. Deixa eu significar melhor a minha fala. Só estou querendo buscar alívio tentando entender algo inaceitável para mim.

Sei que mudar é difícil e mais difícil ainda se está sozinho. Não há culpados. Não somos seres isolados, nada é individual no mundo. Nem nossos atos, nem as consequências deles.

Sim, eu entendo. Você não encontrou seus iguais. As verdades são construções temporárias, elas mudam, libertam. Elas também aprisionam e matam. Sim ideias matam.

Com quem estavas construindo tuas verdades? Onde estavam aqueles que pensavam parecido contigo, tua comunidade? Que voz interna, que personagem interno era este que estava decidindo os caminhos do teu ir embora?

Todos temos esta voz, a voz do plano de fuga, aquela que diz: se tudo der errado eu vou fugir pro Tibet, ser diarista ou sushimen em outro pais, ou eu vou tirar a minha vida.

Sim, eu imaginei. Esta voz estava sempre contigo como uma alternativa: tirar a própria vida. E ela agiu sozinha.

Ah! O poder massacrante do monólogo interno. Não houve outras vozes internas para, juntas, construírem outros caminhos. Não houve uma comunidade externa que legitimasse você com seus pensamentos tão diferentes e únicos e lhe acolhesse.

Quem matou você foi toda essa complexidade de interações. Uma sociedade que não permitiu que você vivesse, a seu modo, a sua vida. Se não foi permitido viver, uma alternativa é morrer.

Caramba. Parece tão lógico. Se somos todos diferentes, andar na linha da esteira industrial de cumprir o padrão do esperado social, mata. Mas a dor de quem desceu da esteira, de quem vive à margem e solitário buscando construir uma vida singular, mata igual. É perigoso e paradoxal. Destrói a auto estima que é construída socialmente. Precisamos de uma comunidade que nos legitime.

Olhando daqui de fora, você e todos vocês, não encontraram um lugar para falar, ser ouvido e escutar. Não contaram com um braseiro de aceitação para se aquecerem em suas angústias, buscas, diferenças e similaridades. Isto não aconteceu.

Agora vocês formam uma comunidade com um sentido: aqueles que denunciam algo grave através do caminho de tirar a própria vida.

Sim, eu compartilho da sua dor. Não era essa sua intenção. Você não pensou que ia machucar tanta gente querida neste ir embora.

O suicídio não é um ato individual, isolado. Ele é social, envolve muitas pessoas. Marca e mata muitas outras vidas. Gera dor, muita culpa para uns,  raiva para outros.

Você teve suas razões, treze razões, trinta e três razões para acabar com o seu sofrimento. E agora ver a dor e sofrimento naqueles que você amava é avassaladora. Sua dor continuará viva.

Sim, olhar para o futuro. Eu me comprometo com seu pedido. Não olhar para trás, mas sim para o que podemos aprender com isso tudo. Parar de buscar culpados e tirar uma aprendizagem. Você fez o que lhe foi possível naquele momento e a partir deste ponto, podemos pensar no que pode ser mudado daqui pra frente.

Agora faz mais sentido que sua história sirva como uma herança, um convite a reflexão.

Podemos nos responsabilizar por práticas relacionais diferentes, com mais escuta, tempo e aceitação do outro? Podemos gerar comunidade, gerar  intimidade e relacionamentos de paz livre da culpabilização individual? Como podemos contribuir no nosso contexto, para a diminuição das discriminações, preconceitos e opressões que sofrem os que se diferenciam do padrão?

Como um legado, levarei sua reflexão para toda a minha comunidade e pedirei que compartilhem. Levarei sua reflexão para quem está pensando em tirar sua própria vida. Outros caminhos precisam existir.

Sim, eu sei. Este é o caminho que lhe trará paz. E a mim também.

Telma Lenzi

Agosto/2018

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